Recentemente, em julgamento finalizado no dia 12 de março de 2021, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por violar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero. A decisão confirmou a liminar concedida pelo ministro Dias Toffoli em fevereiro também deste ano, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 779.
De maneira sucinta, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) questionou na Ação a tese da legítima defesa da honra, diante de sua utilização para absolvição de acusados de feminicídio, bem como a divergência nas decisões de Tribunais de Justiça que ora validam, ora anulam vereditos do Tribunal do Júri em que se absolvem acusados processados pela prática de feminicídio com fundamento na tese. O partido apontou, também, divergências de entendimento entre o Supremo e o Superior Tribunal de Justiça (STJ).
A tese, embora tenha perdido força, por muito tempo foi sustentada em teses defensivas visando a absolvição ou, como alternativa, a redução da pena do acusado, uma vez que o feminicídio estaria amparado pela proteção da honra daquele (homem) que o cometeu.
O caso de maior notoriedade e que ano passado trouxe à tona novamente o assunto em virtude do Podcast “Praia dos Ossos”, produzido pela Rádio Novelo, que retoma de maneira bastante sensível o feminicídio cometido contra Ângela Diniz, por seu companheiro Doca Street, em 1976, na cidade do Rio de Janeiro. Para quem tomou conhecimento da história, em um primeiro julgamento realizado, a defesa criminal obteve êxito em reconhecer a tese da legítima defesa da honra, assegurando que Doca fosse condenado a uma pena de dois anos de reclusão, o que possibilitou a suspensão condicional da pena e, consequentemente, que ele não fosse preso.
Deixando de lado a discussão acerca do encarceramento como melhor resposta punitiva à prática delitiva, o que impressionou mais a quem agora tomou conhecimento do caso, foi de que de 1976 para cá, pouco mudou nos casos de violência contra a mulher. Argumentos como “matar por amor”/”por amar demais” e teses como a legítima defesa da honra – até então vigente – funcionam como um lembrete diário de que a modernidade ainda está longe quando falamos de direitos femininos. Não é de se espantar que a tese foi aceita por muito tempo, pois uma sociedade explicitamente construída nos pilares do machismo e do patriarcado traz reflexos em diversas esferas da vida social, política e jurídica.
Como bem colocado pela ministra Carmen Lúcia, a tese foi constituída para de certa forma adequar-se “à tolerância vívida” na sociedade, isto é, aos assassinatos de mulheres com comportamento que destoam das expectativas do ser mulher, tal qual ocorreu com Ângela, popularmente conhecida como a “Pantera de Minas” e que desafiava as regras patriarcais impostas à época. Com efeito, os sentimentos e preocupações da mulher podem ser desconsiderados sem qualquer incidência de culpa ou remorso, facilitando a justificativa da violência cometida contra elas (Rockler-Gladen, 2008). No mesmo sentido pontuado por Schraiber e d’Oliveira alguns tipos de violência são cometidos contra a mulher, especificamente, por elas serem mulheres, uma vez que “a diferença do estatuto social da condição feminina, (…) faz parecer certas situações de violência experimentadas pelas mulheres (…) como experiências de vida usuais”.
Em importante – porém tardia – vitória, a decisão interpretou dispositivos penais e processuais penais nos ditames da Constituição Federal, de maneira a excluir a hipótese de legítima defesa da honra, esta aberração jurídica criada no seio do instituto da legítima defesa, prevista no artigo 25 do Código Penal. Ampliando a restrição imposta em caráter liminar, restou determinado que a defesa, a acusação, a autoridade policial e o juízo não podem utilizar, direta ou indiretamente, o argumento da legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais nem durante julgamento perante o Tribunal do Júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento.
Ora, não é espantoso que o país que ocupa o desonroso quinto lugar no ranking mundial de índices de mortes de mulheres, ter convalidado por tanto tempo a honra masculina como bem jurídico de maior valor e relevância do que a vida da mulher. Por escancarar a verdadeira condição da mulher na atualidade, a simples hipótese de se ter aplicação no sistema jurídico brasileiro representa um grande perigo de violação constitucional.
Além de se tratar de um argumento antijurídico, a tese é gritantemente discriminatória contra as mulheres, uma vez que condiciona as próprias vítimas como causadoras de suas mortes.
O feminicídio, per si, nada mais é do que o ápice da violência e discriminação contra as mulheres, pois consolida definições rasas da mulher a partir de modelos tradicionais, como a maternidade e o casamento, bem como as características de pureza, doçura e submissão. Para além disso, reforçam a mulher no papel de mero objeto e confirmam a dominação masculina nas estruturas de poder.
Em 2015, a Lei nº 13.104, que propriamente criou a figura penal do feminicídio, ao incluí-la como circunstância qualificadora do homicídio, veio também com intuito de enterrar de vez teses como a aqui mencionada, que nada mais nada menos do que realizam um julgamento moral da mulher/vítima. Criminalizar a morte de uma mulher por razões do seu gênero almejam, ainda que sem muito sucesso prático, pôr fim a naturalização e perpetuação do ciclo de violência contra as mulheres no Brasil.
Transcorreram 45 anos desde o assassinato de Ângela. Quase cinquenta anos para apontar violações à dignidade humana da mulher e finalmente se determinar como inconstitucional a aplicação da tese de legítima defesa da honra, a qual muitas vezes servia, grosseiramente falando, como salvo-conduto para feminicidas. Passou-se o tempo de se obter respaldo jurídico, tanto direta quanto indiretamente, para as ações contra mulheres que apenas exercem sua liberdade. Não obstante, a pergunta que fica é: quantas Ângelas foram necessárias?